20.6.06

Diário de bordo – Uma mochila, dois sapatos furados e três caixas

(Relato da viagem entre 18 e 20 de janeiro de 2.006 a Florianópolis.)

Parte 1 – O ônibus de dois andares (ou Como consegui chegar a Curitiba vivo e sem nenhum machucado aparente)

Meu pai me acordou naquele dia aos gritos. Levantei sem a esperança de um dia feliz. Ele queria que eu fosse para Florianópolis. Me disse que eu tinha que levar algumas caixas de chaveiros – ele vende chaveiros e afins. “É um pouco complicado”, eu disse. “Primeiro: eu nem dezoito anos tenho. Segundo: fica a 900 km daqui.” Ele me pediu para pesquisar os preços das passagens e que não me preocupasse. Não achava que iria para Florianópolis realmente. “No fim ele vai por conta própria”, pensei.

Naquela mesma noite eu cheguei na rodoviária, carregando uma das três enormes caixas que eu teria que levar. As outras duas meu pai e meu irmão carregavam, com igual esforço. Um mulato na entrada das escadas rolantes me disse, com voz de drogado: “não tá pesado demais não? Dá pra eu carregar pro patrão.” A rodoviária do Tietê é um mundo a ser descoberto. Já a percorri de cabo a rabo, e já descrevi o percurso algumas vezes. Pois justamente dessa vez descobri que não sabia onde ficava o estande da Catarinense, empresa que faz a viagem de São Paulo a Florianópolis. Já às onze, encontrei um atendente Com um sorriso, debochando de minha amargura, ele disse:

– O nosso próximo ônibus só amanhã às seis da manhã. O último saiu há dez minutos.

Me mandou tentar na Cometa uma viagem com escala em Curitiba. A moça da Cometa me perguntou que tipo de ônibus eu queria. “Executivo, por favor”, pedi, depois de constatar que a diferença entre o melhor e o pior era de apenas vinte reais. “O senhor quer o de dois andares?”, ela perguntou. Eu, depois de uma segunda pergunta – ninguém me chama de senhor – porque não ouvi a primeira, resolvi arriscar. Já tinha ouvido falar do medo que o povo tem desses ônibus, mas apertei a tecla “quem se importa?” por um tempo e vambora. Fiquei vinte minutos na fila para guardar a bagagem. Um rapaz atrás de mim puxou conversa, sobre – claro – o tempo. Me despedi de meu pai e de meu irmão, para a maior viagem sozinho que fiz até então.

Os ônibus de dois andares são de uma simplicidade complexa. Você entra por uma portinhola no meio do ônibus, que dá para um cubículo com mais três portas e uma escada em caracol. Das três portas, uma vai para o andar de baixo, uma para o banheiro e outra para a cabine do motorista. Subi as escadas com o coração gritando em meu peito, com a solidão de novecentos quilômetros a serem percorridos. Na parte de cima, nada que não tinha visto antes nos ônibus de Atibaia: o corredor, as poltronas, e, no fim, a surpresa. Um sofá com um pequeno freezer ao lado. Procurei a minha poltrona, número quarenta e três, e coloquei minha mochila na do lado. Um rapaz da viação passou com pacotinhos – dentro deles, bolachas, doces e mais bolachas –. Me deu um.

Atrás de mim, um senhor careca ria. Nas poltronas ao meu lado, o mesmo rapaz que encontrei na fila das bagagens. Ele acenou, disse algo relacionado a “uma viagem longa” e começamos a conversar sobre São Paulo. Ele dizia estar feliz de voltar para Curitiba, sua cidade natal, e que a cidade da garoa era grande demais para uma pessoa só. Eu concordava. Me lembro de passarmos por Taboão da Serra, ainda conversando. Sobre tudo: mp3, a padaria do tio dele, amores jogados fora. E o sono vinha. Paramos a conversa e cochilei um pouco, ouvindo Spread Your Wings e Mulheres de Atenas no meu tocador. A lua me seguia da janela do ônibus. Aquele momento ainda passa pela minha cabeça quando me lembro da viagem. O luar exaltando a silhueta das montanhas do Paraná, que são as melhores do Brasil. Já as tinha visto antes, mas era dia. À noite, tudo fica mais misterioso. Olhava para trás e percebia que o rapaz tinha o mesmo problema para dormir que eu.

Acordei. O rapaz me cutucava o ombro de leve. “Chegamos ao posto”, ele disse. Era a parada que o ônibus fazia, às três da manhã. O único motivo que não me fez ficar bravo por ter sido acordado a cutucões era a fome. No posto de gasolina tinha chocolates e café, pelo menos. Descemos, eu e ele, passando as pernas por cima dos braços caídos das pessoas adormecidas. O posto tinha como símbolo um grande G, e eu podia jurar que já tinha visto aquele logotipo antes. Lembrei. Meu pai e eu também paramos ali, quando fomos a Porto Alegre, dois meses antes. Então não era ainda o Paraná. Era Registro, uma cidade perto da fronteira SP–PR. O café estava quente demais e custava muito caro. Tirei uma folha do caderno que levava comigo e comecei a rascunhar algo que foi o começo desse relato. Apenas marquei os fatos mais interessantes e, na hora de escrever sobre a conversa no ônibus, percebi que não sabia o nome do rapaz.

– Fabiano.

– Prazer, Gabriel.

Deixei o café de lado junto com o papel que recebi na porta do posto, o que me fez voltar e ir pegá-lo com o gerente mais tarde. Combinei com Fabiano que ele pagaria ali e eu pagaria depois na rodoviária de Curitiba (ou foi o contrário?). Entramos no ônibus a passos largos, rindo da vida e cheios de emoção. Eu estava fora de casa!

A conversa anterior, pelo que percebemos, foi só um prelúdio da que tivemos depois da parada. Sentamos no sofá – mais confortável que o da minha casa – no fundo do ônibus e tiramos água gelada do freezer. E ali a conversa se alastrou por horas sem fim, interrompida apenas às vezes para uma mijada (ou não). Por fim, o sono nos venceu e fomos dormir, cada um em seu canto.

Novo cutucão. Agora estávamos na rodoviária de Curitiba. O céu ainda estava escuro, e um cheiro forte de café vinha de uma lanchonete. Andei ao lado de Fabiano pelo corredor, descemos juntos e esperamos o motorista tirar nossas bagagens. Duas freiras esperavam as malas enormes delas, que atrasaram a de todos os outros. Fabiano vigiou nossas malas enquanto fui procurar um carregador. Encontrei um na porta de outro ônibus, os cabelos compridos penteados pra trás. Levava um carrinho de ferro enorme. Ele levou nossas malas até a plataforma A2, que ia para Florianópolis. Comprei uma passagem também no ônibus executivo para Floripa. Reparei que, por coincidência, a poltrona também era a 43. Fabiano me esperava, e enquanto eu andava pela rodoviária reparava na sujeira. Curitiba, uma cidade tão bonita e organizada, com um terminal que parecia uma morada de mendigos.

Fabiano tinha que ir para Guaratuba, na praia, encontrar seus pais depois de duas semanas em São Paulo. Me despedi dele, lembro ainda de sua voz dizendo “falou guri”, e eu fiquei imaginando por que diabos falavam guri naquelas terras.“Té mais, Fabiano.”

O ônibus chegou logo, carreguei as caixas com esforço até o bagageiro porque um cara olhava insistentemente para elas. Assinei meu RG, nome completo, cidade de partida e cidade de destino num papel, como é preciso fazer em todas as viagens interestaduais. Um ajudante de bagagem baixinho pegou minha passagem e eu entrei, dessa vez no andar de baixo. Conforme as pessoas entravam, percebi que todos estavam na parte de cima. E assim comecei a parte final de minha ida a Florianópolis.

Parte 2 – A fábrica de vagabundos

Na televisão do andar de baixo passava um filme sobre analfabetos que burlavam a lei e enganavam a máfia. O caminho de Curitiba a Joinville foi o mais calmo possível. De início, via as ruas da capital paranaense, num embalo sonífero. Dormi? Não lembro. Depois disso me lembro de ter tentado a todo custo ligar para meu pai sem conseguir. Já chegando em Joinville, reparei nas placas. A língua alemã domina a cidade, ou ao menos foi essa a impessão que eu tive. Até o ponto de ônibus tinha o letreiro escrito em alemão. A cidade parece ser escondida entre as montanhas. Seiscentas mil pessoas.

Atravessei a famosa ponte de Florianópolis dormindo. Um senhor que se sentou atrás de mim quando o ônibus parou em Joinville – e depois disso não estava mais sozinho no andar de baixo do ônibus – tossiu alto para me acordar e eu abri os olhos. Os passageiros estavam descendo.

A rodoviária de Florianópolis, completamente diferente da de Curitiba, é um prédio ensolarado e de frente ao mar. O ajudante do motorista que tirava as malas do bagageiro me perguntou quais eram minhas bagagens e eu apontei as três caixas enormes. Ele, com ar folgado, depois de pegar as bagagens de todos os outros passageiros disse “sobe aqui pra me ajudar”. Belo filho da puta de funcionário. Paguei quarenta paus por uma viagem de 300 quilômetros e nem serviço de bagagem tenho. Uma complicação com as etiquetas da caixa – ele não acreditava que uma das caixas era minha, mesmo estando já só eu e ele – me fez apelar:

– Pombas, você acha mesmo que eu roubei essa caixa?

Diante de argumento irrespondível, o assistente detestável liberou minhas caixas, que tive que arrastar até o carregador mais próximo. Perguntei para o carregador onde era a área de desembarque, eu marquei de encontrar lá o amigo de meu pai. Ah, sim. Desculpe, leitor. Esqueci de lhe dizer: quando tentei ligar para meu pai, não foi por demonstração de afeto ou afim. Foi apenas para perguntar onde estava um amigo nosso – José é o nome dele –, que me levaria até o hotel onde eu deixaria as caixas. O encontrei na plataforma de desembarque e o segui até um fiat uno onde estava sua esposa, Julie. Pessoal simpático.

No carro, a caminho do hotel, eu lhe indicava o endereço e ele e Julie me contavam a respeito da cidade. “Floripa é fábrica de vagabundo. O povo daqui tem uma casa, aluga e vive só com o dinheiro pra almoço. Mas também, com uma praia dessas, quem não gostaria de passar o dia surfando?”

O hotel era enorme e clássico, com atendentes de luxo e todas essas frescuras. Ligamos – ou melhor, sendo sincero: José ligou – para o cliente e deixamos as caixas na recepção. Fui embora aliviado. Cento e cinqüenta quilos a menos. Eu sentado no banco traseiro, o casal continuava sua turnê vernácula por Florianópolis. Me perguntavam da viagem, Atibaia, a noite no ônibus e esses pormenores interestaduais.

Fiquei um tempo na casa deles, que fica a 30 km do centro da cidade, do outro lado da ilha. Entre os grandes acontecimentos se destaca o dvd do Chico Buarque, o primeiro banho que eu tomei em dois dias de viagem longa e a praia que eu visitei. Andei uns bons três quilômetros para chegar no mar, seguindo as instruções do José. Cheguei sozinho, tentei entrar na água sem molhar a camisa, me perdi entre as muitas ruas que davam acesso aos guarda-sóis. Me lembro principalmente da água, a única em toda minha vida que era realmente azul. Ah, sim. Fui numa livraria comprar um livro para ler na viagem de volta – nada fantástico, só um livro do Saramago.

Já chegava a noite, e resolvi ligar à Catarinense para voltar a São Paulo. Meu pai me ligava a todo tempo dizendo para eu ficar, era uma oportunidade única et cetera, mas não sou tão cara de pau a ponto de ficar na casa de gente hospitaleira comendo, bebendo e dormindo de graça. Iria pegar o ônibus das oito, mas já era tarde, teríamos que correr.

O trânsito de Florianópolis, cidade pequena – 300 mil cabeças –, é simplesmente horrível. Ficamos dez minutos esperando uma fileira de carros que passava como uma serpente em nossa frente para podermos prosseguir. Cheguei na rodoviária apavorado, olhando o relógio com medo de perder o ônibus. Conversei com o rapaz da viação, “desculpe, senhor, já partiu o último ônibus.” Estava procurando o estande de outra viação qualquer que iria para São Paulo e um rapaz alto, me interpelou:

– Ei, quer comprar uma passagem pra Sampa?

Chequei com o rapaz da viação, a passagem era válida, o cara teve que adiar a viagem sabe-se lá por qual motivo. Fui afobado até José e Julie, me despedi, eles ofereceram uma visita “sempre que quisesse” e tals. Entrei no ônibus e dormi, não antes de olhar meu relógio e constatar que estava uma hora atrasado.

Parte 3 – Eu devia ter nascido no Sul

Dormi a maior parte do tempo. Mal, é verdade. Pelo menos no começo. Uma garota estava sentada com sua mãe nas poltronas atrás de mim, e ela não parava de fazer barulho. Li algumas páginas do livro, umas quarenta. Engraçado, deveria estar tocando algum blues do Eric Clapton na viagem de volta. Eu estava sozinho, voltando para a casa, com um livro na mão e uns poucos reais no bolso, além de minha mochila. Não usava camisa. Estava com a blusa por baixo e um colete por cima. A camisa estava suada e quando tomei banho em Florianópolis a tirei. Ouvi música, claro. Mas a paisagem foi o que mais me cativou. Eu estava sozinho, finalmente. Como nas músicas do Bob Dylan: sozinho e longe de casa, e eu estava feliz com isso. E o Sul é foda. Eu definitivamente deveria ter nascido lá.

A parada foi rápida, muito mais rápida porque eu estava dessa vez completamente sozinho, sem Fabiano para rachar o preço do café comigo. Comprei uma garrafa de água, uma de Pepsi Twist e três chocolatinhos que parecem Hershey‘s. Liguei para a Luisa, a Luisa que disse ter morrido de inveja de eu poder ir até Florianópolis sozinho, só pra tirar sarro. Eram duas da manhã e sei que a acordei. Como da primeira vez, tive que desviar de braços de gente adormecida tanto para sair quanto para entrar do ônibus.

Quando acordei estávamos de volta ao Taboão da Serra. Triste por ter voltado para casa, desci na rodoviária do Tietê que tanto conhecia, subi para uma lan house e falei com tios meus que moram no Ipiranga. Iria para a casa deles antes de ir a Atibaia. Encontrei-os numa esquina perto da estação Vila Mariana, fui para a casa dele e ali fiquei o resto do dia, até meu pai passar por lá e me levar para casa. Eu tinha voltado à dependência familiar.

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