22.11.06

Na Lua o Homem

Era apenas um homem, um corpo nu sobre a areia lunar. Um grão entre grãos de elementos rochosos, e para o universo não faz a menor diferença se eles vêm da Terra ou da Lua. Num grande raio de almas mortas e gritos inaudíveis, nada havia, como uma esfera de milhares de quilômetros que o separava de outra forma de vida qualquer, apesar de ele também não ser exatamente vivo. Se biologicamente viver é nascer, se nutrir, reproduzir e morrer, estava biologicamente morto. Não se lembrava do momento da concepção - e nunca lhe ocorreu a idéia de que tinha nascido algum dia. Também não recordava de jamais ter comido. Afinal, vivia num mundo de pó, um oceano de vácuo, nenhuma coisa além de crateras produzidas há milhões ou bilhões de anos por algum meteoro xereta que resolveu adentrar a lua; nada que realmente o interessasse. Sua cabeça era vazia de qualquer tipo de informação terrena. Ignorava a existência de qualquer homem, incluindo nisso ele, que não deixava de ser pedaços de matéria formada de uma explosão de nada, que se juntaram a outros minúsculos pedaços e formaram essas esferas enormes ou esses seres estranhos. Era humanamente impossível que ele existisse, mas ali estava, sob todos os aspectos visíveis, vivo. Simplesmente existia, assim como todos nós.

Tinha sonhado novamente com aquilo enquanto dormia sentado: suas mãos sobre pedaços de pele arredondados que pareciam nádegas pequenas, mas tinham protuberâncias castanhas em suas extremidades, círculos marrons com algo no centro, e eram ligados a outro pedaço, esse não parecido com nádegas mas com seu próprio abdômen, exceto se olhasse mais para baixo e visse pêlos negros formando um triângulo, sem mais nada; essa mesma região, nele, era bem diferente. Apalpava-as violentamente, punha-nas entre os lábios e não sabia o porquê de fazer isso: jamais tentara se morder. Para sua surpresa, logo após ele punha seu corpo acima daquilo, e ao subir o olhar via pedaços macios de pele, agora vermelhos, uma fileira de tecido rosa sobre outra, com alguns retângulos brancos entre eles - uma boca. Punha sua língua a grudar naquela que ficava escondida entre aqueles nacos de carne, sem saber o porquê, e era subir mais o olhar e ver um nariz, mas em outro rosto. Ao ver os olhos alheios o sonho acabava, aquelas pupilas ainda em sua mente, ao acordar suado. Em cada noite desbravava essa aventura improvável, construindo uma enorme odisséía mental que se tornava seu único passatempo.

Sonhara agora com aquele amontoado de cabeças e pescoços cobertos por pêlos de outros seres, bastante parecidos com aqueles que os usavam. Todos aqueles crânios acompanhados de tórax, braços e pernas, e tudo coberto por montes de pelugem. Seus pés eram protegidos por couro, e ele não entendia porque esconder os pés se todos os têm iguais. Os passos eram dados em uma pista de massa dura e cinzenta, com montes quadrados (cúbicos?) de outras cores cercando a pista. Não eram meros amontoados; eram colinas suntuosas, torres de vidro, pelas quais olhos alheios estavam sempre a observar, atenciosamente ou não. E todos aqueles animais andando sem motivo, caminhando rumo a lugar nenhum apenas por o fazerem todos os dias. A idéia de não cursarem esse caminho nem mesmo lhes ocorria. Eram pessoas indo às suas obrigações diárias. Que o dever de um grão de pó indefinido era o simples existir e o do vento tremular em seus sonhos era capaz de compreender. Mas toda a estrutura e aquele fazer sem realmente querer dos homens lhe parecia complicado demais. Ao abrirem suas bocas, suas cordas vocais emitiam urros raivosos e grotescos, que geravam conflitos entre eles. Mas lhe parecia pior quando o som não era tão bravo, sendo até mesmo calmo e leve, mas significando algo ainda pior que o outro, por ser insulto oculto. Esses pensamentos todos lhe ocorriam enquanto se aprofundava no abismo da psicodelia, no inimaginável sonho que jamais poderia se tornar sólido. Mas o momento mais terrível era o que lhe fazia acordar com berros que não podia ouvir, e perceber que tinha a pele molhada e os cabelos eriçados: ao aproximar-se da multidão caminhante, uma face se virava interrompendo o curso de pegadas, e então mostrava-se por inteira. Nunca tinha visto a si próprio, mas podia reconhecer nas feições a mesma preocupação, nos olhos a mesma lágrima e entre os dentes a mesma saliva: ele próprio era um deles.

Nunca pensara na morte: a idéia simplesmente não lhe ocorreu em momento algum de sua vida, até morrer. Era insensato o pensamento de que, num dia ou noite, repentinamente, tudo acabaria com um encerramento de atividades cerebrais ou ainda a falta de sangue a ser bombeado de seu coração para suas veias. Sua voz se fecharia num suspiro final, seus olhos perderiam lentamente o brilho, lágrimas escorreriam por todo seu rosto. A morte não se mostraria como uma besta encapuzada, mas como o fim de tudo, nunca mais ver o Sol nascer ou a Terra brilhar: talvez sem dor, talvez com muita. Igualmente imbecil lhe era existir uma outra possibilidade de viver. Paraíso e inferno, purgatório, nirvana, reencarnação, tão desconhecidas quanto a palavra “eu”. Os planetas giravam sem a ajuda de ninguém: as cordas da enorme marionete do universo eram invisíveis para ele, quanto mais o manipulador dos bonecos. Não presenciou um falecimento ou mesmo um nascimento: vivia apenas o presente, sem se lembrar do passado ou imaginar o futuro. A própria noção de tempo era inválida para seus neurônios: por que existiria o que já se passou, ou o que passará? Por que, ainda, existiria o agora? Não precisava dessas perguntas nem de um deus para lhe dar suas respostas. Jamais acordaria, então, com o alívio de estar vivo e poder desfrutar de mais um amanhecer, assim como não adormeceria com o medo de os primeiros raios de sol da manhã iluminarem seu corpo morto. Todas as vezes que suspirara, todos os pensamentos que já teve, os sonhos, melodias que correram por seus ouvidos, entardeceres quando o sol se esconde atrás da esfera azul com manchas brancas e verdes: tudo esquecido, desperdiçado eternamente num último ruflar de asas em seus olhos, um brilho final nas pupilas. Morto, como todas as outras coisas do universo: sua única exclusividade, a de estar vivo em meio a montes de mortalhas naturais, perdida. E ainda assim, ao que tudo indicava, o dia continuaria a entardecer; com ele ou sem, se assim fosse preciso. Sob todos os aspectos, tudo seguiria seu ciclo de ninguém. O sol iluminaria a longa planície sem que alguém se aquecesse. Pela primeira vez lhe ocorreu que o futuro se tornaria presente, e o presente seria passado. Por essa ótica, tinha todos os motivos para se preocupar com o fim - cada vez mais - inevitável.

Como poderia, então, narrar a própria morte, se fosse o único dentre todos os elementos que estavam ao seu redor que não restaria? A morte é a própria síntese da situação de pensar na morte: uma desnecessidade tola, inútil. Os últimos ruídos da respiração de um homem na lua são inaudíveis para todo o universo. É assim com todos. Somos homens na lua que não serão lembrados, sem exceção. O sentimento de pensar em seu último momento é indizível, sendo possível apenas coletar pedaços dele: é perceber que quando suspirar uma vez mais para acabar com este ciclo vicioso chamado vida, destruir em um instante todos os dias, lágrimas, sorrisos e prazeres, descobrirá que nada teve importância. Sem mais pensamentos ou idéias, se afogaria num oceano de águas negras, com pessoas no fundo, cálidas e sem nunca mais dizerem uma palavra, nenhum lampejo em seus cérebros. Logo se tornaria um deles. Acender a chama do pensamento de nada adiantaria, então, se ela se apagaria para nunca mais brilhar. E foi assim, desimportantemente, que o homem na lua cumpriu sua última etapa na natureza humana e fechou os olhos para nunca mais abri-los.