21.4.07

Noite

E não é estranho que eu pergunte talvez o motivo, que me ocorra entre um ponto de ônibus e outro a pergunta e que eu filosofe que no fim é tudo um grande por quê?, sentado aqui nesse banco da linha 07 Vitória Régia, e a senhora que entra no ponto da Santa Casa me cumprimenta e que posso fazer que não seja aproveitar aquele momento puro de rara ingenuidade, o acenar descompromissado e ela me olha e sorri, e eu sorrio como se fosse algo que não pudesse ocorrer de outra maneira, por quê, deus?, não é estranho?.

Um ápice incontrolável de sentimento, tudo causado por esse trajeto no ônibus ser o último de uma noite de tantos trajetos, tantas noites em uma só, noite virada por inteiro, e lembro vagamente que quando era em torno de três da manhã aquele reggaeiro que eu conheci sabe-se lá onde, nesses vaivéns em que os hábitos noturnos nos forçam a girar, olhava para a rua e isso me fez pensar que o ato de ele olhar para a rua não é menos válido que qualquer outro fato, assim como foi de grande valor eu levar Alex até sua casa quando a noite começava a acabar, uns dois quilômetros de avenida Lucas cheia de gente e mais um sem vivalma até a mansão de classe média onde mora, eu na hora da volta sozinho pensando no que havia acontecido tão pouco tempo atrás, aquela japonesa me chamando de maneira vulgar para um beijo que se tornaram três, não cheguei a um consenso comigo mesmo de como nossos lábios começaram a se unir, seu hálito de hortelã e ela me segurando o cabelo da nuca e massageando assim de leve, a ponto de eu abrir os olhos para ter certeza de estar ali mesmo; uma hora depois estamos eu e ela na praça da Igreja da Matriz e é a Jéssica que me beija, ou eu a beijo sabendo que ela deseja me beijar, não é bom mas é sereno, terno, calmo; é uma despedida, porque Alex está aqui me chamando para ir e eu estaria levando-o para casa dali a pouco mas não sabia que pensaria nisso tudo na hora da volta, ó meu deus como a vida é doce, doce e triste.

Sei que esses momentos apanhados ao vento de uma mente com o sono de vinte e oito horas de vigília não serão repetidos jamais, sei que talvez sequer as situações voltem a ser como foram, talvez eu vá para o bar do Marcelo e já não tenha nenhum conhecido, quem sabe eu volte para Atibaia ver como está minha cidade depois de eu ter ido morar em São Paulo, então resolvo passar uma noite fora e me deparo com a realidade de que todos os personagens da peça foram trocados, não há mais ninguém, nada, um pouco como um cenário que muda completamente, e posso reconhecer cada tijolo, cada parede, sei a cor daquilo e tenho tantas lembranças da vez em que vomitei no Centro de Convenções de tão bêbado ou a reminiscência de eu e meus amigos passando por essa rua, mas não é a mesma rua, e não é o mesmo bar porque não é nem o mesmo Marcelo, mudaram os personagens e toda a história virou outra, devo fechar o livro uma hora.

Me pego às vezes nessa vontade de chorar que eu só conhecia pelas músicas, os sambas das lágrimas que caem sem o chorão perceber, mas é verdade, acontece, não é menos masculino ou mais homossexual fazer isso, é que é tão e é tudo e todos nós aqui vivendo como se fôssemos figurantes, passa a vida e a deixamos passar, escorre feito areia nos nossos dedos para o mar e não há volta, podemos subir em navios e procurar aqueles grãos de areia mas não vamos encontrar jamais, é impossível, a vida não recorre a esses artifícios humanos, não retorna, às vezes até penso que ela nem vai. Olhando pela janela a luz do poste, me bate nos olhos e eu os fecho com todo aquele filme passando ali em preto e branco silhuetado, vivo, penso, morro, mas não hoje, hoje estou aqui dormindo e tem essa coberta e esse edredom e não passo frio, o travesseiro é macio, não, hoje a noite é quente, durmo aconchegante, talvez nunca mais.

4 Comentários:

Blogger Carmem Luisa disse...

E eu aqui, boquiaberta, a pensar em como Gabo consegue escrever algo lindimais assim. E penso, tanto que fico trêmula e ao mesmo tempo continuo com meus olhos acompanhando cada letra espalhada nesta tela brilhante.

E não importa tanto assim, sabe? Porque, afinal, todos somos personagens de uma mesma história.

2:20 PM, abril 27, 2007  
Blogger Iris de Oliveira disse...

gracias pela visita.

vindo de você ( oh! amado mestre!) fico mais que feliz.]

já falei tudo que tinha que falar sobre Noite.
Beijos
Iris

5:07 PM, maio 01, 2007  
Blogger Lara Spagnol disse...

não é só você que vive.
mas é, certamente, só você que escreve isso.

a tiazona aqui gostou, beatzinho.

1:02 AM, maio 05, 2007  
Blogger [sic]. disse...

Bem, eu já disse: enxuto, não inchado. Objetivo, não periclitante. Ziguezague? Talvez. Mas chegue a algum lugar. O terceiro parágrafo tem salvação.
Abraço.

9:15 PM, maio 07, 2007  

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